Entrevista ao Portal Quinquilharias

Entrevista originalmente publicada aqui.

Quinquilharia conversou com o escritor, roteirista e professor sobre o subgênero steampunk.

O Steampunk é um subgênero da ficção científica onde as histórias são ambientadas no passado, com apetrechos modernos aparecendo antes do que vimos na história real. Tal tecnologia é criada através da ciência, mas adaptada ao seu tempo, com dispositivos construídos com madeira e metal, possuindo várias engrenagens, com aviões e demais meios de transporte movidos a vapor.

No Brasil, o gênero não possui uma variedade tão grande de obras, passando longe de nosso cinema e televisão. Contudo, esse ano tivemos a surpresa de ver a Amazon Prime anunciar a série A Todo Vapor!1. Ela faz parte de um universo transmídia composto por livros, quadrinhos e até mesmo um jogo de cartas, ambientados em um universo chamado de Brasiliana Steampunk.

Conversamos com o escritor, roteirista e professor Enéias Tavares (foto em destaque) sobre o universo de Brasiliana Steampunk e A Todo Vapor!, primeira série steampunk brasileira.

Pedro Passari e Claudio Bruno em ‘A Todo Vapor!’.
Murilo da Matta: Como surgiu a ideia de criar um cenário steampunk no Brasil e incluir personagens de nossa literatura?

Enéias Tavares: Arte nasce do desejo, do prazo e, quase sempre, da frustração. Nesse caso, a resposta tem a ver justamente com a dupla frustração – primeiro de aluno e depois de professor – de como a nossa literatura é apresentada na escola. Enquanto outros países e culturas não têm problema algum em voltar ao passado e reinventá-lo no presente – veja o que os ingleses fazem, por exemplo, com o seu Sherlock Holmes – nós temos uma dificuldade de sequer compreender o que passou em nosso território. Diante disso, e falando um pouco de desejo, sempre almejei trabalhar com literatura fantástica e quadrinhos, criando histórias para um público mais jovem e mais aberto a histórias de aventura, ficção científica e terror. Esses dois desejos se mesclaram à minha leitura de Alan Moore e sua Liga Extraordinária, além de minha busca, na época, por narradores específicos para contar uma história de suspense policial. Foi quando num lampejo a hipótese me veio: e se Louison e seu antagonista, o detetive Pedro Britto Cândido – dupla e trama que antecedem Brasiliana Steampunk – vivessem num cenário steampunk? E se sua história fosse contada por Isaías Caminha vindo do Rio de Janeiro para escrever uma reportagem e por Simão Bacamarte, o alienista alienado do hospício onde Louison está preso? E se, para completar esse emaranhado, tivéssemos uma sociedade secreta chamada Parthenon Místico, formada por outros heróis literários em domínio público? E se todos vivessem em Porto Alegre, mas uma Porto Alegre exótica, insólita e steampunk? Por fim, completa essa história o concurso da Editora LeYa, que investiu pesado na literatura fantástica em 2014. Um concurso que me deu o ímpeto – e o deadline – para terminar o livro. Como disse antes, desejo, frustração e prazo, a receita para fazer qualquer escritor tirar suas ideias do papel.

Murilo da Matta: E a ideia de criar uma série transmídia, ambientada neste universo, apareceu como? Qual o desafio de produções dessa natureza?

Enéias Tavares: Novamente, uma convergência de fatores. Primeiro, quantos universos expandidos temos no Brasil? Se pensarmos nas referências que temos de mundos como Hogwarts, Gotham City, Westeros e Terra Média? Passada a publicação do livro, a ideia de que Brasiliana Steampunk poderia ser a nossa “Liga Extraordinária Tupiniquim” começou a aparecer em resenhas e outros veículos, com alguns professores usando o livro em sala de aula e convites aparecendo para parcerias e criação de produtos. Eu mergulhei na ideia de uma série transmídia em função do trabalho de Affonso Solano, um dos curadores da LeYa, e de Christopher Kastensmidt em seus respectivos universos, Kurkala – d’O Espadachim de Carvão – e o Brasil Colonial fantástico – d’A Bandeira do Elefante e da Arara. Mas uma coisa é sonhar e projetar e outra é concretizar, pois qualquer projeto transmídia demanda a participação de vários profissionais. Nisso, a agência de produção transmídia Grupo EPIC foi essencial. Foi graças a eles que melhoramos o site oficial da série, produzimos um book trailer animado e conseguimos financiar o card game Cartas a Vapor! Por fim, posso dizer que me apaixonei pelo processo de expandir o universo para outros formatos e também do desafio que isso significa, em termos de produção e comercialização. Daí vem parcerias com empresas como Tocalivros, Potato Cat e Cosmo Nerd, além de editoras como Jambô, AVEC, New Order e a própria LeYa. Fecha esse combo os apoios da UFSM, onde sou professor e onde montamos um estúdio de economia criativa, e a agência de dezenas de artistas, como Fred Rubim, Jessica Lang, Karl Felippe, Bruno Accioly, Marcus Lorenzett e tantos outros que trabalham comigo há muito tempo. Por fim, sobre o desafio, acho que o principal é despertar em você não só o criativo como também o administrativo e o comercial. Esses últimos elementos raramente são destacados na produção de arte e cultura, mas são essenciais para você conseguir viabilizar projetos e – o mais importante, sempre – chegar no seu público.

Produção Transmídia em Jogos, Quadrinhos, Material Educacional e Livros

Murilo da Matta: Sabe-se que no Brasil produzir uma série/filme com este tipo de conteúdo é bem difícil, ainda mais se for independente. Por causa da falta de apoio e tudo o mais. Quais foram as maiores dificuldades durante a produção da série?

Enéias Tavares: De 2017 a 2020, eu e Felipe Reis – o outro criador de A Todo Vapor! –, além de toda a equipe da série, em diferentes funções, claro, não paramos de trabalhar um segundo. Todo projeto parte de três estágios mínimos: Pré-Produção, Produção e Pós-Produção. Primeiro, foi o desafio de trabalhar a distância. Minha base de operação fica em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e a produtora de Reis em São Paulo capital. Depois do roteiro, a equipe teve de escolher elenco, desenhar e produzir figurinos e props, escolher e agendar locações e então filmar, organizando com todos os profissionais envolvidos. A Todo Vapor! é uma criatura que existe em razão do grande Victor Frankenstein que é Felipe Reis, um sujeito que conseguiu levantar esse monstro e reunir mais de cem profissionais para insuflá-lo de vida. De minha parte, investi no Web Quadrinho, trabalhei nos cartazes e artes do projeto, escrevi Juca Pirama Marcado para Morrer, o nosso primeiro romance, e bati cabeça com os mestres da Potato Cat e da Dice Berry sobre o jogo de cartas. Mas os grandes desafios da produção foram vividos por Reis, sua equipe e elenco. Quando chegamos na pós-produção, a fase mais demorada do projeto, que levou mais de um ano e meio, ficou evidente o quanto precisaríamos ter mais grana do que eu e Felipe poderíamos investir, pois Efeitos Especiais, Trilha Sonora e Colorização são etapas trabalhosas, lentas e caras. Foi nessa reta final que tivemos a entrada de empresas como Anim All Animação Sintética e a Blues Content como parceiras, o que ajudou a minimizar alguns custos, além de um edital que vencemos para produções originais. O valor recebido ajudou a cobrir alguns dos nossos investimentos e nos deu fôlego para o restante dos custos. Em suma, batalha, sorte e espírito incansável, além das turbulências inerentes de qualquer processo. Ser artista é compreender que o caos da produção é o caos da criação, e aprender a aceitar e a se divertir com o inesperado é muitas vezes o que torna as obras tão especiais.

Murilo da Matta: E como se deu a escolha do elenco?

Enéias Tavares: Felipe Reis fez todas as escolhas, afinal, a série seria produzida e filmada em São Paulo. No meu caso, participei do processo com indicações básicas de características físicas, descrições psicológicas e artes dos personagens, alguns deles já com visuais bem marcados. Juca e Capitu foram escritos para Reis e Thais Barbeiro, num processo inverso do costumeiro: que personagens cairiam como uma luva para essa dupla de atores magistrais? Daí nasceram o “mago itinerante” Pirama e a detetive feminista de “olhos de cigana oblíqua” – essa última uma personagem que há tempos os leitores de Brasiliana perguntavam se iria aparecer ou não na série. Quanto aos demais, aí assim, foram ajustes de quem interpretaria Benignus, Acauã, Sergio, Bento e Nioko, entre outros. Felizmente, Luiz Carlos Bahia, Pamela Otero, Pedro Passari, Claudio Bruno e Bruna Aiiso arrasaram, além dos demais integrantes do elenco, como Alessandro Imperador, Luciana Caruso, Antônio Destro, Beto Schultz e Paulo Balteiro. Para um escritor, ver suas criações ganhando rostos tão talentosos é uma dádiva, ainda mais com a participação especial de Beatriz e Louison – nas peles de Aretha Oliveira e Ronan Horta.

A magia da produção e da pós no cartas da série audiovisual
Foto de Fabio Ghrun e Design de Marcus Lorenzett

Murilo da Matta: Conte mais sobre a ambientação da série. Como vocês escolheram os locais pra gravar uma série steampunk?

Enéias Tavares: Originalmente, a série seria filmada em Paranapiacaba, interior de Santo André (SP), uma vila ferroviária que é uma das capitais do steampunk em nosso país, sobretudo pelas ações do Conselho Steampunk, que organiza a SteamCon por lá. Infelizmente, não tivemos a liberação para as filmagens, o que foi um problema, pois o roteiro foi escrito pensando em locações específicas que iriam homenagear os principais espaços da vila, como a árvore do enforcado, o castelinho e o teatro Lyra Serrano. Com essa negativa, substituímos a original “Paranapiacaba das Névoas” por “Vila Antiga dos Astrônomos”, uma cidade ficcional que é um amontoado de cidades do interior de São Paulo, com Felipe Reis e Thais Barbeiro – na época também fazendo a produção executiva da série – correndo para visitar, agendar e providenciar hospedagens, refeições e condições de filmagem, pois havia também o cuidado com a previsão do tempo, que poderia anunciar que a produção teria sol e filmagens ou então chuva e reagendamentos. Num total foram 36 diárias, filmadas em São Paulo, Santos, Itatiba, São Roque, Atibaia, Bertioga e Luis Carlos, entre outras, resultando numa Vila Antiga memorável.

Murilo da Matta: Sabemos que hoje a inclusão conta muito e a série possui mulheres fortes e que roubam a cena (Capitu e Vitória Acauã). Isso foi feito propositalmente pensando nesta inclusão ou foi algo que simplesmente surgiu?

Enéias Tavares: Penso que inclusão hoje já não seja uma questão de escolha e sim de naturalidade. Nossa vida é perpassada pela diferença, ainda mais em nosso país, no qual a variedade cultural, étnica e linguística é um traço da nossa constituição. E isso, apesar de um século de apagamento e silenciamento, já estava na literatura do século XIX. As mulheres são protagonistas nela – Capitu, Aurélia e Rita Baiana, para citarmos apenas três exemplos – bem como a homoafetividade – lembrando de Sergio e Bento no Ateneu e de Pombinha e Léonie no Cortiço. Assim, o que deveríamos estranhar seria a ausência desses personagens e temas em nossa série. Mas eu entendo e concordo com teu ponto, Murilo, por mais que tenhamos avançado no reconhecimento dos lugares de fala e de expressões diversas, ainda há muito trabalho a ser feito. No caso de Brasiliana Steampunk, voltamos a essas narrativas anteriores e buscamos nelas elementos que já estavam lá. Já em A Todo Vapor!, valorizamos todos os personagens, indiferente de gênero ou orientação, com o auxílio do empenho e do trabalho exemplar de atores como Pedro Passari e Claudio Bruno, além de Thais Barbeiro, Pamela Otero e Luciana Caruso.

Heróis pra ação: Vitória e Juca Pirama de Pamela Otero e Felipe Reis; Aurélia, Bento e Capitu de Luciana Caruso, Claudio Bruno e Thais Barbeiro.

Murilo da Matta: Sobre a Amazon Prime Vídeo, como se deram as negociações e quais os próximos passos da série?

Enéias Tavares: Há uma sequência de episódios – aparentemente desconexos, porém essenciais – que nos levou a essa parceria. Essa sequência tem a ver de um lado com Felipe Reis indo a uma palestra com um dos idealizadores da O2 Play Distribuidora. De outro, com a publicação de Juca Pirama pela Jambô Editora, que lançou o livro na CCXP de 2019. Foi lá que eu e Felipe reencontramos esse contato da O2, dando origem a negociações e ao contrato com eles. É da distribuidora as negociações que levaram A Todo Vapor! a Amazon, o que foi um “final” mais do que fantástico para um projeto tão desafiador. Mas eu coloco “final” em aspas duplas porque nenhum projeto termina, de fato. Lançamentos – seja de livros, quadrinhos ou séries – não são o fim de nada e sim mais um estágio que envolve divulgação, busca de audiência e de futuras parcerias. Nesse momento estamos trabalhando nas legendas para inglês e espanhol, visando o lançamento internacional, algo que A Todo Vapor! – ou Full Steam Punks – já fez muito bem com as seleções para vários festivais. Em outro campo, enquanto Fred Rubim prepara mais quadrinhos da série para o portal CosmoNerd, aproveitando nossa segunda indicação consecutiva ao Prêmio HQMIX, estou na iminência do lançamento de um novo livro de Brasiliana e da escrita de Capitu e o Enigma da Esfinge, novo livro que deve sair pela Jambô no próximo ano e que faz a dobradinha com Juca Pirama Marcado para Morrer. Os dois romances terminam onde começa a série. Cada história pode ser lida ou assistida individualmente, mas em conjunto formam um universo único. Em suma, um quebra-cabeça narrativo e midiático delicioso de se montar, para nós criadores, e, espero, para o público.

Cartaz
‘A Todo Vapor!’ pela Amazon Prime Video e distribuição da O2 Play

Murilo da Matta: Por ser a primeira série steampunk brasileira, A Todo Vapor! pode incentivar as pessoas a produzirem mais obras fantásticas em nosso país. Como você se sente em relação a isso?

Enéias Tavares: Sinto imensa gratidão pela dádiva que é esse projeto e pelas pessoas maravilhosas que ele me trouxe, como o diretor de fotografia Pedro Filizzola, a assistente de direção Daniela Campos, a maquiadora Ariana Neves, o fotógrafo still Fábio Ghrun, a dupla dos efeitos especiais Javier Comesana e Martha Silveira, além dos amigos do Conselho Stempunk que tive a honra de reencontrar, como Hermes Barreto Neto, Alexandre Bader, André Kalixto, Isa Alves, Débora Puppet, Jesse Reeves e Thaís Viana. A Todo Vapor! é sim um projeto pioneiro e torcemos para ser um exemplo daquilo que podemos fazer com paixão, garra e talento em nosso país. Trata-se de uma série feita com muito carinho e que abraça nossa cultura, nosso passado e nossa literatura como poucos projetos fizeram até hoje. Sinto muito orgulho de integrar esse grupo inspirado e inspirador de profissionais que tiraram A Todo Vapor! do roteiro e a trouxeram ao nosso “mundo real.” Meu desejo é que esse projeto inspire outros, sobretudo numa época em que nós, brasileiros, precisamos tanto de heróis e heroínas, de ímpeto e força.

Murilo da Matta: Obrigado pela entrevista, nós do portal Quinquilharia agradecemos muito e desejamos sucesso. Deixamos com os leitores o trailer de A Todo Vapor!

Enéias Tavares: Muito obrigado, Murilo. Foi um prazer conversar com vocês! Um abraço aos leitores do Quinquilharia e espero que gostem da nossa série investigativa e insólita!

 

Enéias Tavares é professor de literatura na UFSM e escritor, tendo assinado os romances A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison (Leya, 2014) e Juca Pirama Marcado para Morrer (Jambô, 2019). Em 2020, a série live-action roteirizada por ele, A Todo Vapor!, estreou na Amazon Prime Video e sua graphic novel em parceria com Fred Rubim, O Matrimônio do Céu & Inferno (AVEC, 2019), foi lançada nos EUA pela Behemoth Comics. Mais de sua produção em www.eneiastavares.com.br e do universo transmídia de suas séries em www.brasilianasteampunk.com.br

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