Um Pouco sobre “Palavras, Magias e Serpentes”, de Alan Moore e Eddie Campbell
Em 2020 e parte de 2021, durante o isolamento social, tive o prazer de trabalhar na organização e na tradução – ao lado de Andrio Santos – de Palavras, Magias e Serpentes, a versão nacional do quadrinho e compêndio – essa poderia ser a palavra – Desease of Language, adaptação que Eddie Campbell fez de duas performances mágicas de Alan More, A Membrana Fatal e Serpentes & Escadas. Além das duas quadrinizações, o livro reúne uma longa entrevista feita pelo ilustrador de From Hell com o Mago de Northampton. Nessa entrevista, Moore detalha sua formação mística, sua compreensão da magia e como ela foi pouco a pouco moldando sua arte e sua vida. Compartilho aqui com os leitores, parte do meu posfácio a essa obra poética, fascinante e altamente indicada a todos aqueles que adoram a obra de Moore e Campbell e que desejam saber mais sobre a relação entre arte, magia e busca existencial.
EXCERTO DO POSFÁCIO DE PALAVRAS, MAGIAS E SERPENTES
“Comecemos com três conceitos.
Magia. A palavra ecoa múltiplos sentidos, que vão do mais ritualístico e sagrado da experiência individual ou coletiva ao mais banal e desgastado espetáculo cênico ou esotérico.
Arte. O termo é multifacetado, podendo ecoar sensibilidades, desafiar visões críticas, povoar a imaginação de criadores e consumidores de ontem, de hoje, de sempre.
Consciência. O vocábulo desperta pendores morais, éticos, científicos e imaginativos, opondo o fantasma mental da máquina corpórea ao que possivelmente nos diferencia dos animais.
O roteirista inglês de quadrinhos, artista multimídia e mago autodeclarado Alan Moore (1953) tem constantemente entrecruzado os três termos em sua vida e em sua obra. No campo de suas inúmeras reflexões, tanto pessoais quanto artísticas, ele tem debatido seu despertar para a magia, além do seu aprendizado e constante prática nessa igualmente enigmática e banalizada seara.
Para Moore, um criador de histórias seria uma criatura híbrida, um compósito cultural que reuniria as figuras de um artista, de um mago e de um alterador de consciências. Tal compreensão repercute em obras quadrínisticas como Promethea, em performances mulmítidia como Angel Passage, em ensaios críticos como Anjos Fósseis e em entrevistas e aparições públicas, essas cada vez mais raras, e em publicações singulares como este livro, intitulado no Brasil de Palavras, Magias e Serpentes.
O volume – que reúne as quadrinizações feitas por Eddie Campbell a partir de duas performances dramáticas de Alan Moore – originalmente se intitula A Disease of Language, numa remissão à frase do ocultista Aleister Crowley usada como epígrafe a esse posfácio. Segundo ela, a magia seria um “vírus de linguagem”. Essa definição interessa a Moore, um artista complexo e experimental que desde novembro de 1993, quando completou 40 anos, tem se dedicado ao estudo, à reflexão e à prática de uma noção muito particular de magia.
Para Moore, a magia é – acima de tudo – um construto de linguagem, um abracadabra de signos, um ato de reinvenção discursiva do mundo que altera a consciência do artista que dá origem a essa reinvenção e dos espectadores que a assistem, leem ou consomem. Nessa acepção, Moore tem defendido uma compreensão de magia que se ajusta à própria linguagem como formadora da nossa visão e da vivência do e no mundo. Assim, alterando a própria linguagem por meio da poesia, da arte e da narrativa, além de outros signos textuais, numéricos, visuais, musicais ou sensoriais, poderíamos alterar a própria realidade. William Blake, um dos mestres do mago de Northampton, prenunciou isso em seu O Matrimônio de Céu & Inferno, quando define a arte como “abertura das portas da percepção”.
Assim, se a realidade pode ser alterada por meio da linguagem e da arte, as religiões e crenças não passariam de poderosos amuletos, igualmente sagrados e ficcionais, tanto divinos quanto narrativos, sistemas imbuídos de sentido e fé. Partindo dessa acepção, Moore não tem qualquer problema em se autodefinir tanto como um mago quanto como um seguidor de Glycon, uma divindade ficcional criada pelo satirista de palco e picareta renomado Luciano de Samosata, que foi apresentada a ele por Steve Moore, também roteirista de quadrinhos e praticante de magia. Foi ao lado de Steve que Alan fundou a sociedade nada secreta “O Grande Teatro Egípcio de Maravilhas da Lua e da Serpente”, ainda na década de 1990. Enquanto Steve apresentava-se como um adorador da deusa grega lunar Selene, Alan dedicou sua magia à divindade romana e em forma de serpente Glycon, duas divindades que nem um nem outro tem qualquer problema de aceitar como igualmente reais e ficcionais.
[…]
Por fim, a longa entrevista de Moore a Eddie Campbell é uma das mais completas reflexões do escritor sobre seu interesse por magia. Nela, Moore debate com Campbell sua formação como mago e como artista, a criação de obras que diretamente se relacionam com o tema – com destaque a Do Inferno, A Voz do Fogo e Promethea –, e um detalhamento de todas as suas performances até aquele momento, além de uma pequena mostra do seu projeto mais importante à época, seu épico quadrinistico pornográfico Lost Girls, em parceria com a artista Melinda Gebbie. Completa o volume, o caderno de esboços de Campbell para uma das seções mais oníricas e sensíveis de Serpentes & Escadas.
Aos leitores de Alan Moore, uma coisa é certa: há neste livro a comprovação de uma mente audaciosa, corajosa e plena em sua busca não apenas por espiritualidade quanto por excelência artística. Como em todos os seus trabalhos, não partiremos de Palavras, Magias e Serpentes incólumes, sem revisitar nossas mais pessoais e obscuras lembranças ou repensar, do presente ao passado, os espaços violentos, misteriosos e mágicos das nossas corroídas e alquebradas paisagens urbanas.
Quanto aos leitores do selo Magicae porventura não familiarizados com a obra de Moore, preparem-se para uma execução de magia que vem diretamente ao encontro de sua mente e de sua sensibilidade. Aqui, magia é sacralidade, corporeidade e consciência. Aqui, magia é revelação, imagem e poesia. E retomando Blake, um convite a ver o infinito no grão de areia depositado entre os vincos de nossos desgastados sapatos e a vivenciar a eternidade na fagulha de uma lembrança.
Como um vírus, a arte entra em nosso corpo, altera nossas defesas biológicas, fomenta nossas visões mais febris. Como um vírus de linguagem, magia é o que Alan Moore e Eddie Campbell nos ofertam aqui, numa obra que une texto e imagem, mente e corpo, pensamento e desejo.
E o resultado, não poderia ser outro senão abertura de nossos portais perceptivos e de nossos templos imaginativos, anulando entraves que a sociedade moderna não cansa de dispor diante de nossas visionárias capacidades de criação e fruição.”
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